ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DAVID LYNCH E A ESTÉTICA DO PESADELO

 

 

Maria Esther Maciel

 

 

            Ao abordar, em uma das conferências incluídas no livro Siete noches (1977), “o assombroso e o estranho no ato de sonhar”, Jorge Luis Borges investigou os diversos nomes dados ao pesadelo, chamando a atenção para os “demônios” que habitam a palavra inglesa nightmare, a qual teria, entre os seus significados possíveis, o de “ficção da noite”. Não por acaso, James Joyce criou, a partir desse vocábulo, uma intrigante palavra-valise, nightmaze, para designar a arquitetura onírica (e labiríntica) de Finnegans Wake, obra cujo enredo ou “antienredo” se passa todo numa intrincada noite de sonho. Isso, porque essa palavra, além de trazer implícita a noção de pesadelo conjugada à de labirinto, aponta também, por vias transversas, para o inevitável estado de desorientação que define quem nele ousa se introduzir, visto que maze, enquanto verbo, indica o ato transitivo de confundir, desorientar,  lançar em um estado de perplexidade.

            Creio que esse jogo nightmare/nightmaze poderia também designar o universo fílmico de David Lynch, já que desde seus primeiros curtas-metragens realizados nos anos 60 até seu ultime filme, Inland Empire, o cineasta, pintor, fotógrafo, escultor, escritor, cartunista e compositor norte-americano, nascido em 1946, vem fazendo da “estética do pesadelo” uma das linhas de força mais evidentes de seu trabalho criativo. O que se dá a ver não apenas na atmosfera estranha e perturbadora das cenas que cria, nos deslocamentos de identidade dos personagens ou nas situações irreais que os envolvem, mas também na própria sintaxe dos filmes. Desvios de sentidos, suspensões temporais, fragmentações, apagamentos súbitos, enquadramentos que realçam os efeitos de estranhamento da imagem, uso de cores saturadas e ângulos impressionantes conferem às películas "lynchianas" um caráter onírico, labiríntico, feito de desvios e estradas perdidas, sem pontos precisos de interseção. E uma vez dentro desse espaço, não há como escapar do descaminho Em meio à vertigem e ao espanto que este provoca, resta ao perplexo espectador também sonhar (ou fingir que sonha) o sonho que vê.  Ou deixar-se sonhar pelo próprio filme.

            David Lynch – um dos poucos representantes canônicos do cinema contemporâneo a se permitir o exercício de uma linguagem aberta à experimentação formal e às ousadias da imaginação – iniciou sua trajetória artística como pintor, atividade que nunca abandonou e à qual conjugou também as de fotógrafo e escultor. Seus primeiros trabalhos no campo cinematográfico foram curtas de animação, dentre eles  Six figures getting sick (1966) – que mostra cabeças tridimensionais em vários estados de vômito –  e The alphabet (1968),  que já prefigura o clima onírico que marcará os filmes subseqüentes. Eraserhead, de 1977, foi o primeiro longa-metragem do diretor, filme de inquietante estranheza, que desafia os limites da representabilidade para explorar – também em atmosfera de pesadelo – o horror que subjaz à vida aparentemente prosaica de um pai na sua relação com um feto monstruoso. Esse apreço pelas deformações e monstruosidades reaparece, poucos anos depois, em O homem elefante, de 1980, indicado a oito Oscars. A que se seguiram Duna, ficção científica de 1984, e  Veludo azul (Blue Velvet), de 86, filme que alia mistério, perversão, violência e insanidade em cenas de grande impacto cromático e sinestésico. Depois do filme intitulado The cowboy and the Frenchmen, e da série de tv Twin Peaks (posteriormente desdobrada em filme), Lynch lança em 1990, Coração selvagem (Wild at Heart), umroad-movie bizarro e violento, definido pelo próprio cineasta como “o Mágico de Oz sem o cachorro”, e que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes. Já em A estrada perdida (The lost highway), de 1997,  Lynch traz à tona um emaranhado jogo de tempos, espaços e identidades múltiplas, em que os personagens são sempre outros de si mesmos, ocupando, simultaneamente, todos os lugares e lugar nenhum. Não deixa de ser intrigante que logo em seguida surja o linear A história real (The Straight story), um outro road-movie, que trata da história de um velho que faz uma longa e insólita viagem pelas estradas dos Estados Unidos num cortador de grama. Um filme que, por seguir um viés narrativo que não se desvia da referencialidade nem da linearidade, coloca-se em evidente dissonância com a experiência narrativa de a Estrada Perdida e dos filmes posteriores, Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive) e Império dos Sonhos (Inland Empire), ambos de sintaxe intrincada, cujo deslinde (se é que este seja possível) prescinde dos esforços da razão. Se Mulholland Drive desorienta pelo súbito embaralhamento de referências, tempos, lugares e identidades (à feição de Lost Highway), Inland Empire – um filme sem roteiro, feito com tecnologia digital – leva a desarticulação própria da linguagem onírica às últimas conseqüências, inserindo-a na ordem do delírio, onde não há limites entre realidade, ficção, imaginação e alucinação. Como se tudo fosse filmado por uma câmera escondida atrás do olho, naquela zona conhecida como ponto cego, onde  a visão falha mas, paradoxalmente, capta o real insuportável que se oculta nas dobras da realidade visível.

            Os estranhos mundos de Lynch, porém, não se circunscrevem aos seus filmes, e estão também presentes em suas pinturas, composições musicais e produções televisivas. Ocupam ainda um site oficial da Internet (davidlynch.com) e são comentados pelo próprio cineasta no recém-lançado Em águas profundas – criatividade e meditação (Rio de Janeiro: Gryphus, 2008), livro que – para a surpresa de muitos admiradores do cinema “lynchiano” –  mescla fragmentos autobiográficos e notas sobre filmes com reflexões sobre a prática de meditação transcendental, conselhos de auto-ajuda e outros dizeres breves, de cunho edificante. Se, num desses textos, Lynch diz  que “é um absurdo o cineasta dizer com palavras o que significa um filme em particular”, podemos acrescentar que, no caso específico dos filmes desse diretor, não há mesmo palavras que dêem conta da complexidade que eles engendram. Impossível buscar um sentido definitivo para cada um, já que o que eles demandam é, sim, uma experiência dos sentidos e da imaginação. São filmes que evidenciam, à feição de Borges, que não existe uma única forma neste mundo que não possa contaminar-se de horror e de assombro, como acontece nos sonhos e pesadelos.

 

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Maria Esther Maciel, poeta, ensaísta e ficcionista, publicou o livro de poesia Triz e os de prosa O Livro de Zenóbia e O Livro dos Nomes, entre outros títulos.

 

Leia também uma entrevista com Maria Esther Maciel, poemas da autora e o ensaio Poesia à flor da tela.

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